Foto: Manuela Enggist/Brasil de Fato
A história de Sophia começou na Páscoa de dois anos atrás, quando ela decidiu comprar ovos de chocolate para suas filhas. Normalmente, essa era uma tarefa do marido, que faleceu pouco antes. Assim, ela foi sozinha ao supermercado em uma área periférica de São Paulo (SP), após seu turno como faxineira no hospital. No caminho de volta, um carro parou ao seu lado. Um homem, inicialmente pedindo informações, a empurrou contra a parede de uma casa, a arrastou para dentro do veículo e a estuprou.
“Eu queria me matar”, afirma Sophia da Silva*. Ela repete essa frase diversas vezes durante a conversa. Sophia, com 45 anos, teve seu nome alterado para preservar sua identidade, assim como as outras mulheres entrevistadas nesta reportagem. Viúva e mãe de duas filhas, ela quase se envenenou com pílulas abortivas que obteve no mercado ilegal, pois não sabia mais como se ajudar. Para ela, era preferível morrer do que continuar grávida.
Sophia conseguiu chegar ao hospital mais próximo, onde contou à enfermeira sobre o estupro e que o agressor ejaculou dentro dela. A legislação brasileira sobre aborto, que remonta a 1940, considera a prática um crime, exceto em casos de estupro, risco à vida da mãe ou anencefalia do feto. A enfermeira informou a Sophia que ela deveria registrar um boletim de ocorrência, mas Sophia hesitava. “Eu tinha medo de que meu estuprador descobrisse e se vingasse de mim ou de minhas filhas.” Ela também temia que a polícia a culpasse pela agressão. Sophia conhecia várias histórias semelhantes. “Eles teriam me perguntado o que eu estava vestindo, poderiam dizer que eu o havia provocado – afinal, eu tenho tatuagens e piercings.”
A enfermeira informou que ela precisaria retornar em um mês para mais exames. Quatro semanas depois, Sophia descobriu que estava grávida. “Comecei a chorar e pedi um aborto.” Ignorando seu pedido, uma assistente social registrou seu caso para cuidados pré-natais. “Eu disse que ela não estava entendendo: eu tinha sido estuprada. Mas a assistente social apenas respondeu: ‘Não, você é quem não entende! Existem muitas mulheres como você. Posso te encaminhar para um grupo de apoio, e você aprenderá a amar essa criança. Você pode ir para a prisão se fizer um aborto.’”
Sophia insistiu que queria seguir o caminho do aborto, já que a lei brasileira permite essa opção em casos de estupro, mas a assistente social reafirmou que ela precisaria de um boletim de ocorrência para isso. Sentindo-se impotente, Sophia se perguntava: “Como eu poderia amar essa criança? Eu me sentia tão suja que não conseguia nem ficar perto das minhas filhas.” Ela procurou pílulas abortivas na internet, mas não tinha dinheiro e temia que não funcionassem. Mesmo assim, conseguiu obter o veneno ilegalmente e o guardou no armário do banheiro. “Pensei que, se eu morresse, o feto também morreria.” Ela já havia até planejado o que escreveria em uma carta de suicídio: “Prefiro estar morta do que grávida.”
O MEDO DE CONFIAR
Felizmente, pouco tempo depois, uma colega de trabalho perguntou a Sophia se estava tudo bem, pois notou que ela chorava com frequência. “Na verdade, eu tinha medo de confiar em alguém, mas quando ela me perguntou de forma tão direta, senti a necessidade urgente de compartilhar meu sofrimento.” A colega a conectou com a organização Projeto Vivas. Rebeca Mendes, co-fundadora da iniciativa e advogada, entrou em contato com Sophia e se ofereceu para ajudá-la a conseguir uma consulta sobre aborto em uma clínica que não exigia boletim de ocorrência para realizar o procedimento. Contudo, Sophia só descartou as pílulas quando teve certeza absoluta de que o aborto foi bem-sucedido. Ela teve a sorte de ter acesso a uma organização que pôde ajudá-la. Muitas mulheres enfrentando uma gravidez indesejada não têm a mesma oportunidade.
De acordo com um estudo da antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) – que também pode ser conferido na entrevista ao final da reportagem – uma mulher morre a cada cinco dias no Brasil após um aborto. O número de abortos ilegais no país é estimado em mais de um milhão por ano. O caso de Sophia ilustra como a criminalização do aborto gera medo e estigmatização, resultando em incertezas e erros, como explica Roberta Mendes. “Nos casos de estupro, a lei não exige nenhuma prova além da declaração da vítima”, afirma. “Os hospitais não têm permissão para solicitar um relatório policial.” Segundo o estudo de Debora Diniz, o estupro é a motivação para 94% dos abortos legais no Brasil. Em 2022, quase 75 mil casos de estupro foram registrados no país. Com uma população de cerca…